“Um ato político, um ato de sobrevivência, um ato de resistência”. É assim que se define a paraibana de João Pessoa Letícia Rodrigues. Aos 38 anos, a atriz, diretora, dramaturga e gestora do Teatro Ednaldo do Egypto, na capital paraibana, encontrou no teatro o caminho para se firmar profissionalmente. Desde os nove anos, Letícia dedica a vida e os sonhos aos palcos, onde se vê realizada. No Dia da Visibilidade Trans, 29 de janeiro, Letícia reforça a identidade, mas revela desafios diários para ser quem é.
Letícia é famosa por várias interpretações. Esteve à frente de diversos espetáculos infantis e ganhou ainda mais notoriedade ao protagonizar com o irmão gêmeo Romilson as drags gêmeas “Diet e Light”. Mais recentemente, conquistou dezenas de prêmios com a obra “Eternamente Bibi”, na qual interpreta e homenageia a artista carioca Bibi Ferreira.
Já em “Gisberta – basta um nome para lembrarmos de um ódio”, Letícia traz à pele a história de Gisberta Salce Júnior, mulher trans brasileira que foi assassinada, vítima de transfobia, em Porto, Portugal, onde morava.
Em meio a conquistas, dores e desafios, Letícia precisou lutar contra preconceitos e convencer a família de que o caminho escolhido era o certo. Quando mais jovem, percorria cerca de 10 km a pé entre os bairros de Jaguaribe e Manaíra, em João Pessoa, comendo apenas biscoito e sem almoçar, para construir a carreira no teatro.
“Minha família dizia que teatro não dá dinheiro”, lembrou, em entrevista à jornalista Yanka Oliveira, da TV Cabo Branco.
“Teatro é vida, é conseguir emprego com a postura e oratória. Tenho minha equipe de teatro há 20 anos. É uma das profissões mais antigas do mundo. As pessoas precisam respeitar mais”, afirmou.
Com mais de 50 prêmios nacionais e 40 espetáculos no currículo, Letícia coleciona conquistas com a profissão que escolheu, que a permitiu espaço na chefia de um dos mais importantes teatros da Paraíba, onde ela é gestora desde 2021.
“Sou consagrada enquanto gestora e recebo o respeito da classe artística, que me dá essa chance. É um trabalho de formiguinha, para todos os públicos”, disse ela, sempre muito orgulhosa do que tem alcançado.
Carreira profissional abalada pelo preconceito
Ícaro Matteo tem 32 anos. Natural de Caruaru, em Pernambuco, ele se mudou para João Pessoa aos 19 anos após ser aprovado para o curso de medicina na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Enquanto estudava, vendeu quadros na praia, produtos de petshop e deu aulas de reforço escolar para se manter financeiramente. Ao se formar em medicina, conquistou espaços na atenção básica em saúde, mas atualmente está desempregado, mesmo com a formação, pós-graduação e seis anos de experiência. Ele atribui as perdas ao preconceito que enfrenta por simplesmente ser quem ele é.
“Minha maior dificuldade era se apresentar como homem trans na faculdade por medo de ter as portas fechadas e ser rechaçado”, disse ele, relembrando o temor. “Após alguns anos de terapia, compreendendo que eu precisava me reconectar com a minha essência, tomei a decisão de me apresentar da forma que fosse mais assertiva pra mim”.
Ícaro alcançou posições desejadas na carreira, mas viu o mundo desmoronar quando se apresentou como homem trans. “As portas de emprego começaram a ser fechadas, perdi uma renda principal. Passei a me questionar se eu realmente tinha capacidade de exercer minha profissão. Recebo apoio de pacientes e da família que constituí, o que tem sido minha motivação”, disse ele, em entrevista à TV Cabo Branco. O médico é casado com uma mulher e tem duas filhas.
Ícaro disse ser o primeiro médico homem trans da Paraíba. Ele lembrou que enfrentou dificuldades para mudar o nome e o gênero e se vê em um espaço de militância, mesmo com tantas dificuldades. “Eu não imaginaria que ia sofrer tantos danos por causa de preconceito”, lamentou.
O Conselho Regional de Medicina na Paraíba (CRM-PB) informou que não tem como afirmar quem seria a primeira pessoa trans na medicina no estado porque essa apuração envolveria “dados privados, sensíveis aos médicos e que o CRM não tem a necessidade de saber”.
Mercado de trabalho ainda é excludente
Histórias de busca pela realização profissional entre pessoas trans, como as contadas por Letícia e Ícaro, são muitas, mas poucas delas ganham espaços seguros no mercado de trabalho, com renda e estabilidade.
Segundo levantamento do Núcleo de Dados da Rede Paraíba, o número de pessoas trans desempregadas só em João Pessoa chega a ser 566% maior que o de pessoas trans empregadas. No total, em 2023, apenas nove pessoas trans estavam empregadas, contra 60 sem emprego. Os números são relativos ao universo de pessoas atendidas pela Coordenadoria de Promoção da Cidadania LGBT+ e Igualdade Racial de João Pessoa. (tabelas abaixo)
Outro abismo é percebido na diferença entre homens e mulheres trans inseridos no mercado de trabalho. Em 2023, seis mulheres trans estavam trabalhando, enquanto outras 52 estavam desempregadas.
Conforme dados da Coordenadoria de Promoção da Cidadania LGBT+ e Igualdade Racial de João Pessoa, a maior diferença entre homens trans empregados e desempregados foi registrada em 2021. Naquele ano, o número de homens trans desempregados era 285% maior que o de empregados, um percentual bem inferior ao de mulheres trans visto em 2023 (1.500%).
O coordenador de Promoção da Cidadania LGBT+ e Igualdade Racial de João Pessoa, Geraldo Filho, explicou que os homens trans possuem o que ele chama de “passabilidade” mais visível. Ou seja, o homem trans sofreria “menos preconceito” que a mulher trans porque ele seria “menos percebido” pela sociedade.
Transfobia desemprega
Para Geraldo Filho, a transfobia é a causa do alto desemprego entre pessoas trans. “A população trans é vítima de extrema violência, a ponto da expectativa de vida ser de apenas 35 anos para essas pessoas no Brasil. A baixa escolaridade é outro problema, visto que a transfobia colabora com a evasão escolar”, destacou Geraldo.
Segundo o coordenador, as pessoas trans que buscam oportunidades costumam relatar que sofrem com experiências desrespeitosas. “Relatam situações desumanizadas, sem respeito à identidade de gênero, remuneração baixa e em desacordo com currículos muito prósperos”. Ele defende que recrutadores devem oferecer tratamento humanizado a essa população, com respeito às particularidades, como nome social e identidade de gênero.
Importância da diversidade no ambiente de trabalho
O gestor de Recursos Humanos Lucas Matheus dos Santos explica que as vagas afirmativas para pessoas trans desempenham um papel crucial na promoção da diversidade e inclusão no ambiente de trabalho. Ele defende que a seleção deve ser imparcial, com análise das competências. “O recrutador não deve atrelar a vaga ao gênero, mas às competências técnicas e comportamentais exigidas”.
Já os candidatos também devem mostrar o máximo de excelência na apresentação. “Analisar requisitos que a vaga pede, estudar sobre a empresa e estar preparado para qualquer pergunta”, detalha.
Dia de visibilidade, mas população trans segue invisível
A oferta de dados oficiais que expliquem e justifiquem a situação da população trans na Paraíba é outro ponto que dificulta a análise da situação.
Para esta reportagem, também foram procurados a Secretária de Estado da Mulher e da Diversidade Humana, o Ministério do Trabalho e Emprego e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nenhum dos órgãos tem dados oficiais e medições sobre mercado de trabalho para pessoas trans.
O IBGE informou, por meio da assessoria de comunicação, que vai estimar o tamanho da população trans, travesti e não binária do Brasil, mas com levantamento voltado para a saúde. Os dados começaram a ser levantados em 9 de outubro de 2023 e estarão na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde. Pela primeira vez na história, o IBGE perguntará sobre a identidade de gênero das pessoas entrevistadas, além da orientação sexual. Apesar disso, ainda não há previsão de pesquisas sobre empregabilidade para pessoas trans.
Como buscar ajuda
A Coordenadoria de Promoção da Cidadania LGBT+ e Igualdade Racial de João Pessoa oferece auxílio a pessoas trans que buscam oportunidades no mercado de trabalho. O serviço funciona no local conhecido como “Casa Amarela”, no Parque da Lagoa, número 216, no Centro de João Pessoa. Atende nos números 3213-5289, 3213-5290, WhatsApp 98730-6036, e-mail [email protected] ou também por meio do aplicativo “Na Palma da Mão”, da Prefeitura de João Pessoa.